7 de dezembro de 2006

Linha burra na “moratória” da soja

Em artigo publicado no dia 6 de novembro, quarta-feira, no jornal Folha de S. Paulo, o coordenador da campanha 'Y Ikatu Xingu pelo Instituto Socioambiental (ISA), Márcio Santilli, analisa o acordo firmado entre a Abiove (Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais), o Greenpeace e grandes traders para uma "moratória" na compra da soja oriunda de novos desmatamentos. Santilli conclui que os importadores europeus estão fazendo uma interpretação perversa do pacto. Confira abaixo a íntegra do texto.

Acordo entre Greenpeace, Abiove e traders para uma "moratória" na compra da soja oriunda de novos desmatamentos está sendo interpretado de maneira perversa por importadores europeus, segregando produtores sem estimular a melhoria da qualidade socioambiental da produção. Melhor seria compartilhar no interior da cadeia produtiva os custos relativos à melhoria da qualidade.

A produção da soja tem suscitado acirrados debates. Em se tratando de uma atividade altamente capitalizada, pelo menos até o início da recente crise, e que é destinada ao mercado internacional, sob fortes demanda e concorrência, ela tem sido alvo de pressões mais agudas e freqüentes do que outras cadeias produtivas.

Um foco importante de debate se refere ao plantio de variedades transgênicas, ainda mal resolvido. Outro viés da polêmica diz respeito à qualidade socioambiental do produto: se ele provém de propriedades em que é respeitada a legislação trabalhista e ambiental, no que se refere à eventual ocorrência do uso do trabalho infantil ou forçado ou à supressão da cobertura vegetal nativa.

Bem mais crítica é a conexão com o desmatamento na Amazônia, que alcançou índices pornográficos em anos recentes, com impactos negativos sobre a biodiversidade e o clima. A maior parte do passivo ambiental na região está concentrada na pecuária, mas há regiões em que ocorre a conversão de floresta em plantações de soja, além do impacto indireto que geram ao deslocar outras atividades para áreas até então florestadas.

Nesse contexto, movimentos ambientalistas e de produtores alternaram críticas mútuas e tentativas de negociações sobre critérios de sustentabilidade para a produção, sobretudo em relação àquela destinada ao mercado europeu, onde são maiores as exigências dos consumidores e o poder de pressão dos ambientalistas.

Paralelamente, o Greenpeace realizou um movimento de pressão sobre os principais importadores europeus que resultou no anúncio de uma "moratória" na aquisição da soja que venha a ser produzida em áreas de novos desmatamentos. Como é difícil saber ao certo se a produção advém de áreas recentemente desmatadas, os compradores europeus encontraram uma maneira mais fácil de se esquivar da pressão dos ambientalistas, deixando de comprar a soja produzida ao norte da linha divisória entre o cerrado e a floresta amazônicos.

Assim, o resultado concreto do acordo entre o Greenpeace e a Abiove está sendo perverso. Estabelece uma linha burra, pois não há nada que garanta que a soja comprada ao sul esteja sendo produzida de acordo com as boas práticas ambientais e prejudica os esforços daqueles que eventualmente estejam produzindo de forma adequada ao norte da divisória ou que pretendam melhorar a qualidade da produção.

Se essa tendência prevalecer, como ficarão os proprietários sediados no bioma florestal? Deverão abrir mão das boas práticas, já que estarão excluídos dos mercados mais qualitativos? Embarcarão na onda das variedades transgênicas ou mudarão para a pecuária ou a cana-deaçúcar? De onde poderão obter recursos necessários à melhoria da qualidade da sua produção? E, por outro lado, liberada de qualquer critério, a produção de soja ao sul não pressionará ainda mais o bioma do cerrado, onde nascem as águas que formam a Bacia Amazônica?

A questão central está no planejamento da propriedade, e não na sua localização geográfica. E, embora novos desmatamentos sejam sempre indesejáveis, há casos em que eles são legalmente possíveis.

A discussão sobre critérios deve prosseguir ao largo desse equívoco, de modo a gerar um paradigma positivo que possa se estender às demais cadeias produtivas. Muito melhor que a suposta "moratória" seria enfrentar a questão concreta dos custos socioambientais de uma produção de boa qualidade por meio da constituição de um fundo composto por uma taxação acordada nas transações comerciais que seja revertido para projetos de apoio aos produtores dispostos a sanar os seus passivos ambientais e a melhorar a qualidade do seu produto. Se os compradores e consumidores desejam dispor sempre de soja de boa qualidade, devem colaborar ativamente com os seus parceiros, compartilhando os custos implícitos, venha ela de onde vier.

Márcio Santilli

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